O BARALHO

Estava a atravessar um tsunami. Faltava-me a força e sentia-me a afundar, as minhas lágrimas de dor profunda não acalmavam a tempestade, antes a faziam crescer e adensar-se. Fuji de casa e fui para casa de quem sabia me ia acolher e mimar, a Lokita.

A minha amiga Lokita com o coração partido pelo meu sofrimento e sem saber o que fazer para me ajudar, levantou-se do sofá dirigiu-se ao móvel e abriu a primeira porta de onde tirou um baralho de cartas. Voltou para o sofá pegou na tábua que tapava a lareira e começou a baralhar as cartas envelhecidas pelo uso e gastas pelo tempo. Com as lágrimas a correr pela cara abaixo disse-lhe:

- Achas mesmo que estou com disposição para jogar às cartas? Nem as cartas conheço.

Ela sem me responder continuou a baralhar as cartas que de seguida partiu e dispôs de cinco a cinco sobre a tábua de 50 por 30cm. Depois de as dispor todas começou a falar coisas da minha vida que ela tão bem conhecia e outras que para mim não faziam qualquer sentido. 

Com os olhos rasos de lágrimas consegui sorrir tristemente. 

- Só tu para me fazeres rir com as tuas parvoíces Lokita

- Eu estou a falar a sério, eu sei fazer isto, aprendi em Moçambique

- Oh, achas que eu acredito nisso? 

- É verdade!

- Se isso é verdade porque nunca me disseste.

- Porque tenho medo que digam que sou bruxa.

- Que digam? Mas tu conheces-me bem, sabes que eu não diria e escondeste isso de mim estes anos todos.

- Não disse, há longos anos que não mexo nisto, já nem me lembro do valor de muitas das cartas. 

- Mesmo assim, é inadmissível que não tenhas confiado em mim para me dizer. 

- Porque havia de dizer-te se nunca mais lhes toquei, fi-lo agora por ver o teu sofrimento. 

Senti-me triste por ver que aquela amiga, para quem eu não tinha um segredo, tinha segredos para mim. Quando ela partiu fiquei a saber que aquele não era o único segredo dela para mim e que alguns deles partiram com ela sem os poder revelar pois a vida e a doença impediram-na de falar e até mesmo de escrever. 

A Lokita adorava perder-se pelas lojas chinesas que proliferam pela cidade. Eu ia atrás dela sem o menor interesse em nada, não gostava de chinesices, mas achava graça à alegria dela no meio daquelas roupas cheias de missangas e lantejoulas de cores garridas que ela gostava de comprar. Naquele dia não comprou só roupa, comprou também um baralho de cartas. Quando chegou a casa escreveu em cada uma o valor respectivo e uma meia dúzia delas não escreveu nada. 

- Toma, são para ti, para te entreteres nas noites de solidão e para não ficares tão zangada comigo por eu ter ocultado que sabia por cartas.

- Claro que devias ter dito, sabes o quanto eu gosto dessas coisas.

Deu-me um abraço apertado e carinhoso e a sorrir pediu:

- Amigas?

- Amigas! - respondi a sorrir por entre teimosas lágrimas que saltavam dos meus olhos.

(Retirado do livro de Mary Sil)


PAZ DIVINA

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