UMA VIDA PASSADA
Calcei os sapatos de corda e sai do hotel pelo trilho de terra.
Tinha que voltar aquele lugar, precisava percorrer o mesmo caminho. Quando comecei a descer as escadas que tantas vezes tinha descido as lágrimas correram dos meus olhos e as lembranças vieram como se tudo tivesse acontecido apenas há uns anos.
Assim que cheguei junto às ruínas de uma casa que um “dia” foi minha não resisti a subir aqueles cinco degraus, a medo pelo estado de degradação em que tudo se encontrava, avancei na expectativa de ali ainda haver algum vestígio de uma vida ali vivida.
Mas nada!
Quem teria ali vivido, depois de eu ter partido?
Alguém teria sido ali tão feliz como eu fui? Alguém teria ali vivido o drama que eu vivi?
O dia está triste como eu, as nuvens escondem o sol e o vento fustiga as árvores enquanto as águas do lago gemem ao chegar à margem.
Recordo um outro dia em que cheguei a este mesmo lugar;
- Cheguei, onde estão todos?
- Tom! Crianças, cheguei!
Enquanto puxava o barco para terra e amarrava a corda, o Tufo veio a correr de cauda a abanar para me dar as boas vindas.
- Tufo, onde estão todos?
Virou o focinho na direção da clareira.
- Ok, deixa-me tirar os sacos das compras e vamos já ter com eles.
- Ok, deixa-me tirar os sacos das compras e vamos já ter com eles.
Subi o trilho com o Tufo atrás de mim, pelo caminho ia acariciando o musgo de cada rocha que parecia estar à espera que ali mesmo se construísse um presépio, era feliz aqui no meio da floresta junto ao mar.
- Tom? Crianças!?
Silêncio total, onde seria que se tinham metido todos?
O tufo correu à minha frente e foi descobrir o Eri que apareceu de dedo à frente dos lábios a impor silêncio.
Percebi. O Tom estava a jogar às escondidas com os pequenos e ao Eri cabia a tarefa de os encontrar. Sentei-me numa pedra com o Tufo aos meus pés a assistir.
O Tufo era um rafeiro de cor preta e branca com pêlo alto e ondulado, inteligente e companheiro. Fazia as delícias dos meus cinco filhos.
- Achei, achei! Ingrid, encontrei-te.
Eri aos pulos festejava por finalmente ter encontrado um dos escondidos.
Ingrid era a minha princesinha mais nova. Com apenas três anos era a nossa mascote. De grandes olhos verdes e cabelos compridos cor de mel e cheios de caracóis fazia as nossas delícias pela sua meiguice e serenidade.
- Mami, mami achei o Mika. Vem ver onde ele se escondeu, vês como era difícil encontrá-lo.
Eri estava orgulhoso pois foi encontrar Mika debaixo de uma rocha num buraco onde dificilmente poderia ter entrado mas para Mika não havia impossíveis nem dificuldades, persistente e habilidoso conseguia as coisas mais difíceis e inimagináveis. Tinha acabado de fazer quatro anos mas mais parecia o homenzinho da casa, nunca largava a Ingrid e colaborava em tudo com os irmãos mais velhos. Os cabelos loiros sempre na frente dos olhos azuis, mas era assim que gostava, não deixava cortar o cabelo, isso nunca! Fazia falta para proteger os olhos do sol, era o argumento que utilizava para ninguém chegar com uma tesoura perto dele.
- Papi, papi, encontrei-te.
Pronto foi a algazarra total, Erika e Ida saíram a correr dos seus esconderijos e juntamente com o pai correram para os meus braços. O meu marido pegou-me da pedra onde estava sentada enquanto me rodava no ar e os nossos cinco filhos gritavam agarrados às nossas pernas, na maior alegria.
- Minha gente tudo para casa a ajudar a mami a fazer o almoço.
- Ok, Senhora comandante. Você manda, o que me cabe fazer a mim?
- Tom tu acendes o lume para grelhar o peixe, o Eri corta o tomate e o pepino, a Ika lava a alface e a Erika faz a salada enquanto o Mika e a Ingrid põem a mesa.
- E a Senhora comandante o que faz?
- E a Senhora comandante o que faz?
- Eu faço as batatas que vocês tanto gostam, já sabes que dão muito trabalho, preciso da colaboração de todos ou não há pesca para ninguém.
Fui uma criança feliz. Filha única, tinha sido criada com todo o mimo, mas muito só. O meu sonho era ter uma grande família para que os meus filhos nunca se sentissem como eu.
Quando nasceu Eri, uma criança enorme de imensos olhos azuis e sem nenhum cabelo, eu e Tom soubemos que queríamos outras crianças iguais aquela e durante os nove anos que se seguiram fomos programando as datas em que queríamos os nossos cinco filhos.
Mas para o Eri precisávamos um pouco mais de tempo para nos adaptarmos ao nosso papel de pais.
Dois anos e então chegou Erika. Rechonchuda e de cabelos castanhos, olhos azuis como os do irmão, muita chorona, pensamos que afinal o melhor seria parar por ali mas os nossos corações cheios de amor reclamavam por outros filhos.
Uma noite de lua cheia enquanto Eri e Erika dormiam, saímos para a beira do lago. Deitados na erva macia ficamos a olhar o prateado da água e a recordar o nosso namoro e os três anos de imensa felicidade. Perdidos nas nossas lembranças e com os corações repletos de ternura fizemos amor ao luar e soubemos que naquele momento uma nova vida cresceria dentro de mim.
Ika vinha a caminho. A nossa terceira filha. Dona de olhos castanhos tristes e absorta, passava os dias sentada à beira do lago. Nunca conseguimos sondar os pensamentos da Ika, era diferente, participava nas brincadeiras dos irmãos mas por pouco tempo. Voltava a refugiar-se no seu mundo onde mais ninguém entrava. Eu e o Tom preocupávamo-nos, ficávamos horas sentados em silêncio na beira do lago ao lado dela, enquanto Eri e Erika corriam pela mata com o tufo atrás deles.
A nossa preocupação com Ika foi crescendo até que procuramos ajuda junto de um médico, mas o mundo de Ika era só dela e nenhuma ajuda foi suficiente para alterar o seu comportamento.
Eu e o Tom achamos que o nosso amor seria suficiente mas não foi. Pensamos então que outro irmão ajudaria e veio Mika, tentamos que Ika ajudasse e colaborasse nos cuidados a Mika mas o irmão não fazia parte da vida dela. Era um ser desconhecido, ele não cabia na vida dela, não interessava se havia ou não mais um irmão.
Mika era um garoto que passava os dias dentro do barco com a cana de pesca, um dia conseguiu meter Ika dentro do barco com ele, assim começou uma mudança e um amor que não acabou mais e os nossos corações puderam serenar. Agora finalmente tudo estava bem, a nossa pequena princesa não dava trabalho, todos os irmãos queriam cuidar dela. Tinha várias mães e pais, eramos uma grande família, a família que sempre sonhei.
(Retirado do livro de Mary Sil)
PAZ DIVINA
(Retirado do livro de Mary Sil)
PAZ DIVINA
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